Criar uma história para a Cristiana Pé Curto... personagem pré definida.
Não sabia lidar com aquele protagonismo. Tanta confusão em torno de
si. Gente, microfones, aqueles pós no rosto e aquela mulher tão bem vestida que
parecia tirada de uma daquelas revistas cor-de-rosa que se vendiam lá na
papelaria da aldeia. Não havia gente assim por ali…
- Senhora Cristiana, vamos começar por filmá-la um pouco a trabalhar…
- Então não fizeram já isso?
A mulher sorriu, condescendente, denunciando uma ilícita superioridade.
Não gostava de fazer aquelas entrevistas naquelas terriolas de fim de mundo.
Nascera para voos mais altos. E aquela mulherzinha, coxa, velha, onde é que a
tinham desencantado? Cristiana Pé Curto! Havia aquela mania nas aldeias, de pôr
nomes às gentes, sempre a ver com algum defeito ou feitio. Que interesse podia
haver numa octogenária coxa que levava as manhãs a mexer na terra e as tardes a
fazer bonecas e casinhas?
- Filmámos a Senhora a trabalhar no campo, a tratar das árvores, a
colher, a cuidar das galinhas, das cabras, dos porcos... Agora vamos filmá-la a
fazer estas coisas – apontando depreciativamente para as bonecas de barbas de
milho e tecidos velhos e para as casas de pedra e madeira – e a falar dos seus
poemas…
- Está bem!
Sentia-se muito pouco à vontade. A Cristiana Pé Curto vivia ali,
isolada, há tanto ano que não sabia lidar com aquilo. Veio-lhe à memória a
partida dos filhos. Um após outro, tinham partido à procura de melhor, para o
estrangeiro. Hoje, estavam divididos entre a Inglaterra e a Holanda. E lá
vinham, separados, um ou dois dias por ano ver a mãe, umas vezes com os filhos,
outras sem. De nove filhos (seis raparigas e três rapazes), vinte e quatro
netos e já sete bisnetos (não conhecia nenhum dos últimos) se aquela casa se
enchia dez dias por ano era muito. Houve um Natal… Ah! Um Natal cheio de alegria.
Nem conseguira falar com os filhos para os avisar que aquela gente ia lá
filmá-la e entrevista-la.
Mas não era fácil virem todos ao mesmo tempo, com os empregos e as
escolas, e a vontade de conhecer outros lugares. Não havia nada ali para ver,
além de árvores e plantas, e na aldeia mais próxima, uma papelaria, um pronto a
vestir onde trabalhava a Etelvina – a modista -, uma mercearia e dois cafés – o
do Santos e o do Tobias Zarolho -, onde o pessoal da aldeia se juntava nas
noites de verão, as mulheres para beberem um Capilé, ou uma Groselha, ou uma
limonada, os homens, sendo homens, atacavam as cervejas, o copo de tinto, ou o
bagaço.
Já nem havia bailaricos. Para quê? Não havia gente nova para dançar.
Ia tudo embora, à procura de melhor. As festas da aldeia já há muito que tinham
passado de cinco a um dia.
Ainda se lembrava de ir aos bailes com o marido e os filhos, vestidos
com as roupas domingueiras, muito bem penteados – sim que a Cristiana sempre
tivera brio na higiene e boa aparência da família -, todos apinhados na
carroça, puxada pela Mila, a primeira mula que tiveram. Era uma bicha forte,
aquela, e durou tantos anos, sempre a trabalhar. E o marido… Já nenhum dos
filhos estava por lá quando o Leopoldo falecera. Saudades…
- Vamos a isto, Senhora Cristiana? Vai ver que qualquer dia está aí
pelas feiras do país a vender as suas bonecas e casinhas. – O homem era mais
simpático.
- Vamos lá, então…
- Quer ir cantando um dos seus poemas enquanto trabalha?
- Pode ser…
Sentou-se, cantarolando e costurando as vestes das duas bonecas que
jaziam despidas em cima da mesa de trabalho, a mulher bem vestida sentada ao
seu lado, a fazer perguntas sobre tudo e mais alguma coisa, a camara de filmar
ora a fazer grandes planos das suas mãos e do que ia fazendo, ora do seu rosto,
entregue à canção e às respostas.
"A Mãe", Ricardo Bezerro
Ah, estou tão atrasada na leitura dos seus textos, desculpe!!! mas vou recuperar isso em breve. :)
ResponderEliminarAgora começa tudo a diminuir de ritmo, já consigo ter tempo para mim. Um grande beijinho