Momento de viragem, dando corpo
ao texto… Vou utilizar a minha personagem do exercício seis!
Já oito da noite, e o ar fresco
invade-lhe o rosto causando um encarquilhamento instantâneo que fez Isabel poisar
os sacos arduamente pesados e levar as mãos ao rosto, esfregando
energeticamente as faces rosadas e exasperadas pelo vento.
“Um creme hidratante é que me
dava jeito! Ponho um bocado do creme dos miúdos. Não tenho idade para ter esta
pele. – olhou para o vidro da montra, contemplando o seu reflexo usado e
desanimado. – Não tenho idade para nada disto!”
Enquanto caminhava na direcção da
paragem reflectiu sobre o seu regresso a casa. Àquela hora, o Jorge já teria as
crianças com o banho tomado, de pijamas, a Leonor e a Helena já teriam os
trabalhos de casa terminados e estariam agora a brincar no quarto, enquanto o Francisco
estaria em frente à televisão, no chão, com os blocos de construção ou os
carrinhos de brincar, a ver o mesmo programa que o pai, a que também o Gustavo,
espojado no colo do pai, estaria a
tentar assistir, já com as pálpebras a pesar, e o dedo polegar entre dentes.
Sentiu um sorriso surgir timidamente quando os filhos correram para a abraçar,
seguidos pelo pai que, tomando os sacos das suas mãos doridas, a envolveu num
abraço de boas vindas, selado por um beijo reconfortante e apaixonado.
- O jantar está pronto! Vai tirar
o casaco, Querida! Eu levo os meninos para a mesa.
E enquanto poisava o casaco sobre
a cadeira do quarto conseguia ouvir os gritos dos filhos, instigados pelo pai a
se sentarem à mesa, num ambiente de harmonia e felicidade.
- Bolas! O autocarro já lá vem!
Sacos a bandear, puxando os seus
braços em direcção ao chão, como se se tratassem de âncoras, Isabel largou a
correr, em direcção à paragem. O condutor, deixou escapar um sorriso
brincalhão, ao vê-la aproximar-se, tentando erguer os braços para que a visse e
não arrancasse com o veículo.
Subiu os degraus do autocarro, incapaz
de respirar, tentando recuperar o fôlego.
- Isabel, qualquer dia cai
redonda no chão!
- Ai! – sorriu, vasculhando a
mala à procura da carteira com o passe. – Tenho que me sentar!
- Vá lá! Não precisa mostrar o
passe…
O percurso, àquela hora era bem
mais rápido do que pela manhã. Saía tarde, mas reconfortava-a o facto de a
viagem ser relativamente rápida. Não havia muita gente no autocarro àquela hora.
Meia dúzia de rostos cansados do dia de trabalho, com mesmo olhar ansioso pelo
regresso às respectivas casas e famílias. Ao fundo viu a Dona Júlia que lhe fez
sinal para se sentar ao seu lado.
Era boa pessoa a Dona Júlia.
Sempre muito curiosa e desejosa de contar as últimas novidades do bairro… podia-se
contar com ela, para que qualquer notícia chegasse ao fundo da rua ainda antes
do personagem da história completar o percurso. Mas era uma boa amiga, sempre pronta
a auxiliar, sem papas na língua, pronta a defender quem a seu ver merecesse ser
defendido. Com o carrapito grisalho preso na nuca, a roupa negra desgastada
pela idade e o desgosto pela viuvez de há muitos anos, as mãos doridas de dedos
torcidos e deformados pelas artroses, a Dona Júlia compadecia-se com as
circunstâncias da Isabel. Os pequenos olhos ergueram-se e estendeu as mãos para
ajudar a Isabel a sentar-se.
- Deixe estar Dona Júlia. Eu
consigo! Essas mãos precisam de mais descanso do que eu.
- Ai minha querida! E se estou
cansada, hoje! Vê tu bem que saí da consulta no hospital já passavam das sete
horas. E depois a espera… É que nunca mais chegava o diabo do autocarro. Isto,
agente nem pode ir aos hospitais. É os transportes, horas naquelas malditas
salas de espera, a taxa, os medicamentos… São todos malucos! Pensam que a vida
está para todos! Aqueles que acham que sabem mandar, nem sabem o que os velhos
passam. E logo eu que é consulta do reumático, e com estas mãos bem se vê;
consulta dos olhos, da diabetes e dos pulmões, que esta maldita tosse não
passa. Passo a vida enfiada naquele hospital. Mas olha, ainda hoje estava lá
uma bem pior que eu. Tadinha da velhota! Aqueles joanetes! Ai pobre mulher! Nem
sei como é que ela consegue andar. Mas olha que para os mais novos a vida
também não está nada boa! E tu filha! Olha que estás com um ar bem cansado
hoje. Aquele teu marido! Aquilo não é homem, não é nada! Desculpa lá, Isabel.
Sabes bem que eu digo tudo o que tenho a dizer. Aquele homem merecia mas era um
pontapé no rabo, Deus me perdoe – benzeu-se, como que a pedir perdão por
desejar o mal. – Não trabalha, não faz nada, nem com os filhos ajuda. Não pode
ser Isabel! Estou farta de te dizer… Tu livra-te dele, rapariga! Ainda és nova
e estás a tempo de refazer a tua vida.
Isabel fechou os olhos, tentando
esquecer que os restantes ocupantes do autocarro também estavam a ouvir aquela
conversa. A mulher à sua frente, do lado oposto, embora ocupada com o tricô,
não deixou de olhar fugitivamente para ela. Sentiu-se escrutinada, avaliada. “Nunca
mais chega à paragem! Bolas! A viagem hoje não termina."
- Deixa-te estar de olhos
fechados filha! Quando chegarmos eu chamo-te. Bem mereces descansar, que quando
chegares a casa já sabemos como é… Eu que o oiça gritar contigo! Eu que o oiça,
aquele…
Isabel voltou-se, sorrindo
acabrunhadamente para a Dona Júlia, quase a suplicar que se calasse. A idosa
deu-lhe umas suaves pancadinhas na mão pousada no colo.
- Descansa lá, filha!
Falou o tempo todo durante a
viagem, mas a Isabel não ouvia. Pendia entre o sono, o aquecedor da loja do Sr.
Tadeu, que cobiçava desde o início do inverno; o creme hidratante e a vida com
que sonhara.
- Isabel, filha! Acorda! Estamos
a chegar!
Levantou-se sobressaltada.
- Calma! Ajudas-me a levantar?
Auxiliou a Dona Júlia, que uma
vez equilibrada se dirigiu para a saída, enquanto ela pegava nos sacos de
roupa, livros e alguns enlatados que lhe dera a Senhora Dona Luísa, a senhora
para quem cozinhava e em cuja casa fazia limpezas, cinco dias por semana, de há
seis anos àquela parte.
Cheirava a fumo na rua, e o ar
era intoxicante. A Dona Júlia, incapaz de conter a sua curiosidade, de braço
entrelaçado no da Isabel, deu de novo início ao monólogo.
- Ai meu Deus! Não te cheira a
queimado, Isabel? Isto houve para aí incêndio! Ai podes ter a certeza que
houve. E foi ao pé do bairro. O cheiro está cada vez mais forte. Será que
morreu alguém? – Voltou a benzer-se. – Deus nos livre! Ai Isabelinha, já
pensaste! Que horror! Quem terá sido. Ai até me estou a sentir mal…
- Calma Dona Júlia…
Ouviam-se gritos, e a intensidade
dos mesmos amplificava-se conforme se aproximavam, deixando antever no céu nocturno,
toldado de fumo cinzento, os feixes de luz dos carros de combate a incêndios.
- Anda! Vamos lá mais depressa,
Isabel! Ai valha-me Deus! É mesmo no bairro!
A confusão amontoava-se, com as
ruas cheias e as vozes elevadas. E tornaram-se ensurdecedoras quando dobraram a
esquina, ficando de frente para as casas. Havia gente a chorar, abraçada, ambulâncias
a prestar assistência aos sinistrados e aos demais, que sob forte emoção,
haviam sucumbido, incapazes de reagir ao desespero. Dos prédios de três andares
que formavam a travessa sem saída, quatro segundos andares, quatro primeiros
andares e dois rés-do-chãos encontravam-se ainda em rescaldo, com os bombeiros
colocados estrategicamente em escadas e no chão, de agulhetas apontadas para as
réstias de chamas. O intenso fumo impossibilitava uma clara visão do cenário, e
o amontoado de gente afastado pelo cordão policial impedia-as de ver bem o que
se passava.
Sentiu um gelo percorrê-la, ao
passo que a preocupação crescia. A Dona Júlia largou-lhe o braço, aos gritos,
dirigindo-se aos vizinhos para inquirir a cerca do sucedido. Ficou paralisada a
olhar para os restos do seu primeiro andar.
- Isabel!
Ouviu o seu nome e tentou ver de
onde vinha.
- Isabel!
A Cristina, a vizinha de baixo,
amiga de infância, desde sempre a sua mais fiel companheira de aventuras e
desventuras, caminhava na sua direcção, de cabelo desgrenhado e a parca roupa mascarrada pela fuligem.
- Cristina! O que é que aconteceu
aqui, meu Deus?!
A amiga lançou-se-lhe nos braços.
O cheiro a fumo e a queimado entranhou-se-lhe pelas narinas agora já tornadas
sensíveis pelo ambiente em torno de todos.
- Isabel…
- Os meus meninos?
A Cristina afastou-a, segurando-a
pelos ombros. Os olhos brilhavam de emoção, prontos a despejar os últimos
acontecimentos.
- Estão bem Isabel! Foram
assistidos e levados para o hospital.
- Hospital?!
- Calma! Não lhes aconteceu nada!
Apenas prevenção. Engoliram muito fumo. Foi o meu Pedro que os foi buscar. Isabel,
acho que o incêndio começou na tua casa… Querida, tens que ser forte!
- Forte?!
- Isabel, o Jorge morreu! Não o
conseguimos tirar com vida…
Alessandro Ricci