sexta-feira, 31 de maio de 2013

OITAVO EXERCÍCIO (terceira semana)

Momento de viragem, dando corpo ao texto… Vou utilizar a minha personagem do exercício seis!

Já oito da noite, e o ar fresco invade-lhe o rosto causando um encarquilhamento instantâneo que fez Isabel poisar os sacos arduamente pesados e levar as mãos ao rosto, esfregando energeticamente as faces rosadas e exasperadas pelo vento.

“Um creme hidratante é que me dava jeito! Ponho um bocado do creme dos miúdos. Não tenho idade para ter esta pele. – olhou para o vidro da montra, contemplando o seu reflexo usado e desanimado. – Não tenho idade para nada disto!”

Enquanto caminhava na direcção da paragem reflectiu sobre o seu regresso a casa. Àquela hora, o Jorge já teria as crianças com o banho tomado, de pijamas, a Leonor e a Helena já teriam os trabalhos de casa terminados e estariam agora a brincar no quarto, enquanto o Francisco estaria em frente à televisão, no chão, com os blocos de construção ou os carrinhos de brincar, a ver o mesmo programa que o pai, a que também o Gustavo, espojado no colo do pai,  estaria a tentar assistir, já com as pálpebras a pesar, e o dedo polegar entre dentes. Sentiu um sorriso surgir timidamente quando os filhos correram para a abraçar, seguidos pelo pai que, tomando os sacos das suas mãos doridas, a envolveu num abraço de boas vindas, selado por um beijo reconfortante e apaixonado.

- O jantar está pronto! Vai tirar o casaco, Querida! Eu levo os meninos para a mesa.

E enquanto poisava o casaco sobre a cadeira do quarto conseguia ouvir os gritos dos filhos, instigados pelo pai a se sentarem à mesa, num ambiente de harmonia e felicidade.
- Bolas! O autocarro já lá vem!

Sacos a bandear, puxando os seus braços em direcção ao chão, como se se tratassem de âncoras, Isabel largou a correr, em direcção à paragem. O condutor, deixou escapar um sorriso brincalhão, ao vê-la aproximar-se, tentando erguer os braços para que a visse e não arrancasse com o veículo.

Subiu os degraus do autocarro, incapaz de respirar, tentando recuperar o fôlego.

- Isabel, qualquer dia cai redonda no chão!

- Ai! – sorriu, vasculhando a mala à procura da carteira com o passe. – Tenho que me sentar!

- Vá lá! Não precisa mostrar o passe…

O percurso, àquela hora era bem mais rápido do que pela manhã. Saía tarde, mas reconfortava-a o facto de a viagem ser relativamente rápida. Não havia muita gente no autocarro àquela hora. Meia dúzia de rostos cansados do dia de trabalho, com mesmo olhar ansioso pelo regresso às respectivas casas e famílias. Ao fundo viu a Dona Júlia que lhe fez sinal para se sentar ao seu lado.

Era boa pessoa a Dona Júlia. Sempre muito curiosa e desejosa de contar as últimas novidades do bairro… podia-se contar com ela, para que qualquer notícia chegasse ao fundo da rua ainda antes do personagem da história completar o percurso. Mas era uma boa amiga, sempre pronta a auxiliar, sem papas na língua, pronta a defender quem a seu ver merecesse ser defendido. Com o carrapito grisalho preso na nuca, a roupa negra desgastada pela idade e o desgosto pela viuvez de há muitos anos, as mãos doridas de dedos torcidos e deformados pelas artroses, a Dona Júlia compadecia-se com as circunstâncias da Isabel. Os pequenos olhos ergueram-se e estendeu as mãos para ajudar a Isabel a sentar-se.

- Deixe estar Dona Júlia. Eu consigo! Essas mãos precisam de mais descanso do que eu.

- Ai minha querida! E se estou cansada, hoje! Vê tu bem que saí da consulta no hospital já passavam das sete horas. E depois a espera… É que nunca mais chegava o diabo do autocarro. Isto, agente nem pode ir aos hospitais. É os transportes, horas naquelas malditas salas de espera, a taxa, os medicamentos… São todos malucos! Pensam que a vida está para todos! Aqueles que acham que sabem mandar, nem sabem o que os velhos passam. E logo eu que é consulta do reumático, e com estas mãos bem se vê; consulta dos olhos, da diabetes e dos pulmões, que esta maldita tosse não passa. Passo a vida enfiada naquele hospital. Mas olha, ainda hoje estava lá uma bem pior que eu. Tadinha da velhota! Aqueles joanetes! Ai pobre mulher! Nem sei como é que ela consegue andar. Mas olha que para os mais novos a vida também não está nada boa! E tu filha! Olha que estás com um ar bem cansado hoje. Aquele teu marido! Aquilo não é homem, não é nada! Desculpa lá, Isabel. Sabes bem que eu digo tudo o que tenho a dizer. Aquele homem merecia mas era um pontapé no rabo, Deus me perdoe – benzeu-se, como que a pedir perdão por desejar o mal. – Não trabalha, não faz nada, nem com os filhos ajuda. Não pode ser Isabel! Estou farta de te dizer… Tu livra-te dele, rapariga! Ainda és nova e estás a tempo de refazer a tua vida.

Isabel fechou os olhos, tentando esquecer que os restantes ocupantes do autocarro também estavam a ouvir aquela conversa. A mulher à sua frente, do lado oposto, embora ocupada com o tricô, não deixou de olhar fugitivamente para ela. Sentiu-se escrutinada, avaliada. “Nunca mais chega à paragem! Bolas! A viagem hoje não termina."

- Deixa-te estar de olhos fechados filha! Quando chegarmos eu chamo-te. Bem mereces descansar, que quando chegares a casa já sabemos como é… Eu que o oiça gritar contigo! Eu que o oiça, aquele…

Isabel voltou-se, sorrindo acabrunhadamente para a Dona Júlia, quase a suplicar que se calasse. A idosa deu-lhe umas suaves pancadinhas na mão pousada no colo.

- Descansa lá, filha!

Falou o tempo todo durante a viagem, mas a Isabel não ouvia. Pendia entre o sono, o aquecedor da loja do Sr. Tadeu, que cobiçava desde o início do inverno; o creme hidratante e a vida com que sonhara.

- Isabel, filha! Acorda! Estamos a chegar!

Levantou-se sobressaltada.

- Calma! Ajudas-me a levantar?

Auxiliou a Dona Júlia, que uma vez equilibrada se dirigiu para a saída, enquanto ela pegava nos sacos de roupa, livros e alguns enlatados que lhe dera a Senhora Dona Luísa, a senhora para quem cozinhava e em cuja casa fazia limpezas, cinco dias por semana, de há seis anos àquela parte.

Cheirava a fumo na rua, e o ar era intoxicante. A Dona Júlia, incapaz de conter a sua curiosidade, de braço entrelaçado no da Isabel, deu de novo início ao monólogo.

- Ai meu Deus! Não te cheira a queimado, Isabel? Isto houve para aí incêndio! Ai podes ter a certeza que houve. E foi ao pé do bairro. O cheiro está cada vez mais forte. Será que morreu alguém? – Voltou a benzer-se. – Deus nos livre! Ai Isabelinha, já pensaste! Que horror! Quem terá sido. Ai até me estou a sentir mal…

- Calma Dona Júlia…

Ouviam-se gritos, e a intensidade dos mesmos amplificava-se conforme se aproximavam, deixando antever no céu nocturno, toldado de fumo cinzento, os feixes de luz dos carros de combate a incêndios.

- Anda! Vamos lá mais depressa, Isabel! Ai valha-me Deus! É mesmo no bairro!

A confusão amontoava-se, com as ruas cheias e as vozes elevadas. E tornaram-se ensurdecedoras quando dobraram a esquina, ficando de frente para as casas. Havia gente a chorar, abraçada, ambulâncias a prestar assistência aos sinistrados e aos demais, que sob forte emoção, haviam sucumbido, incapazes de reagir ao desespero. Dos prédios de três andares que formavam a travessa sem saída, quatro segundos andares, quatro primeiros andares e dois rés-do-chãos encontravam-se ainda em rescaldo, com os bombeiros colocados estrategicamente em escadas e no chão, de agulhetas apontadas para as réstias de chamas. O intenso fumo impossibilitava uma clara visão do cenário, e o amontoado de gente afastado pelo cordão policial impedia-as de ver bem o que se passava.

Sentiu um gelo percorrê-la, ao passo que a preocupação crescia. A Dona Júlia largou-lhe o braço, aos gritos, dirigindo-se aos vizinhos para inquirir a cerca do sucedido. Ficou paralisada a olhar para os restos do seu primeiro andar.

- Isabel!

Ouviu o seu nome e tentou ver de onde vinha.

- Isabel!

A Cristina, a vizinha de baixo, amiga de infância, desde sempre a sua mais fiel companheira de aventuras e desventuras, caminhava na sua direcção, de cabelo desgrenhado e a parca roupa mascarrada pela fuligem.

- Cristina! O que é que aconteceu aqui, meu Deus?!

A amiga lançou-se-lhe nos braços. O cheiro a fumo e a queimado entranhou-se-lhe pelas narinas agora já tornadas sensíveis pelo ambiente em torno de todos.

- Isabel…

- Os meus meninos?

A Cristina afastou-a, segurando-a pelos ombros. Os olhos brilhavam de emoção, prontos a despejar os últimos acontecimentos.

- Estão bem Isabel! Foram assistidos e levados para o hospital.

- Hospital?!

- Calma! Não lhes aconteceu nada! Apenas prevenção. Engoliram muito fumo. Foi o meu Pedro que os foi buscar. Isabel, acho que o incêndio começou na tua casa… Querida, tens que ser forte!

- Forte?!

- Isabel, o Jorge morreu! Não o conseguimos tirar com vida…

Alessandro Ricci

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